A ativação "à la carte" do artigo 155 da Constituição, como se acaba de
realizar, deixa manifesta a necessidade de o mais rançoso nacionalismo
espanhol triunfar. O diálogo não faz parte da concepção de mundo do
poder central.
Em nome da defesa de palavras grandiloquentes como a unidade nacional,
percorreu-se um longo caminho para desativar as reivindicações de outro
nacionalismo, o catalão —e de outra pretensão de soberania.
Desde 2006, ou talvez antes, o Partido Popular e o socialista PSOE, aos
quais se somou o Cidadãos, vêm limando e cerceando as ambições catalãs.
Em 2010, eles obtiveram um grande êxito, com a sentença do TC (Tribunal
Constitucional) contra o Estatuto de Autonomia da Catalunha —o que, ao
mesmo tempo, catapultou o catalanismo em direção ao independentismo.
Por até 18 vezes se tentou negociar, mas a resposta do Estado sempre foi
a mesma: ativação dos meios de repressão penal e do TC como braço
executor das decisões governamentais. Manifestações multitudinárias,
vitórias eleitorais, elaboração de um "mapa do caminho" —conduzido
primeiro por Artur Mas e depois por Carles Puigdemont—, um sem-fim de
resoluções parlamentares, de leis e de convocatórias eleitorais, tudo
foi recebido com respostas judiciais.
O PP preocupou-se apenas com seus interesses e converteu em impossível o
que poderia ser possível para solucionar um problema político de
primeira magnitude. A realidade é que uma parte importante da sociedade
da Catalunha, associações e o próprio governo regional conduziram um
processo soberano, pacífico e civilizado.
Um dos objetivos sempre foi votar, celebrar um plebiscito, que
primeiramente pretendia ser consultivo (o que ocorreu em 9 de novembro
de 2014) e depois se tornou uma consulta de autodeterminação (em 1º de
outubro deste ano). Tudo aquilo que se quis proibir acabou sendo
realizado: sessões parlamentares, plebiscitos e leis, até que se chegou à
declaração de independência da Catalunha, no último 27 de outubro.
Então, o governo espanhol desenterrou o artigo 155, na prática uma carta
branca para acabar com o autogoverno catalão. Com a autorização do
Senado —num bloco político compartilhado pelo PSOE e pelo Cidadãos—, o
poder central destituiu o governo da Catalunha, dissolveu o Parlamento e
convocou eleições.
Além disso, controla duas áreas importantes, a segurança pública e as
finanças. O primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, tem assim a sua
ilha Barataria, emulando Dom Quixote.
É muito questionável que o uso do artigo 155 seja constitucional, porque
rompe a raiz do princípio das comunidades autônomas da Espanha.
Entretanto neste momento parece que a defesa existencial do Estado é o
mais urgente e importante, e não se está preocupado com minúcias
jurídicas.
Abriu-se a porta para o vendaval da repressão. No momento, essa é a
única via que surge. Enquanto escrevo estas linhas, metade do destituído
governo catalão é encarcerada pela Audiência Nacional (tribunal de
Justiça) com um emprego generoso da prisão provisória. Avizinham-se
novos cenários de terror, com a mesa diretora do Parlamento catalão
esperando como cordeiros sua visita ao Tribunal Supremo.
Estamos diante de um conflito de soberanias entre Catalunha e Espanha,
que deveria dar lugar, a meu ver, a respostas políticas democráticas e
não apenas repressivas por parte do Estado; e a mais racionalidade em
geral, não só o uso abusivo do direito e o fomento das emoções à flor da
pele.
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